O AJUSTE DIRETO NÃO É UM VILÃO
- José Carlos Marques Durão
- 24 de nov. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2022
Primeiras páginas, abertura de telejornais, discutem-no no café, falam dele nos corredores e na rua. O pior é que normalmente não é por coisa boa. Associam-no à corrupção e a más práticas nas compras do Estado. Tem o nome coberto de censura. Injustamente, pois o principal culpado não é o ajuste direto (AD).
O mediatismo exacerbado pode gerar insegurança nos órgãos decisores das entidades adjudicantes (EA). Passarem a ver o AD como uma espécie de persona non grata. Que há que fugir dele para não ter problemas com a justiça. É evidente que não é uma abordagem desejável. O afastamento do AD implica desperdiçar os seus atributos: simplicidade, rapidez, eficácia. O interesse público perderá os benefícios de um instrumento criado para o ajudar.
É o mais antigo procedimento adjudicatório da contratação pública. (1) Nas horas de aperto é claramente o primeiro a ser mobilizado. Os pesos pesados na Europa usam-no abundantemente. Os números são reveladores em França, Itália e Espanha. Portugal acompanha a tendência. O fosso é significativo face aos procedimentos de natureza concorrencial. (2) E a razão da sua existência na lei é compreensível: não paralisar ou dificultar excessivamente a administração pública. (3)
Reconheço, no entanto, que alguns aspetos do regime do AD não estejam suficientemente limados, a ponto de o tornar mais protegido de potenciais vícios das suas regras. Vejamos a mais recente alteração de que foi alvo o CCP, pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro. Refiro-me, concretamente, à nova redação da alínea a) n.º 1 do art.º 24.º e alínea a) n.º 2 do art.º 70.º do CCP, que prevê a possibilidade de escolher o AD, designadamente, quando em anterior concurso público todas as propostas tenham sido excluídas com fundamento que desrespeitam manifestamente o objeto do contrato a celebrar. São propostas que o legislador designa por “inadequadas”. (4)
Diria, num primeiro impulso interpretativo, que inadequadas são todas as propostas que devam ser excluídas. O adjetivo não ajuda muito a quem tem de aplicar a lei. Temos de pegar na lupa para descobrir o que falta.
A nova alínea a), n.º 2, do art.º 70.º, do CCP, tem três situações que fundamentam a exclusão de propostas, se a sua análise revelar:
- Que desrespeitam manifestamente o objeto do contrato a celebrar - a dita proposta “inadequada”;
- Que não apresentam algum dos atributos, nos termos do disposto na alínea b), n.º 1 do art.º 57.º, do CCP;
- Que não apresentam algum dos termos ou condições, nos termos do disposto na alínea c), n.º 1, do art.º 57.º, do CCP.
Porém, a alínea a), n.º 1, do art.º 24.º do CCP, remete para o motivo de exclusão com base na proposta “inadequada”. Ou seja, sinaliza apenas um motivo de exclusão para legitimar a adoção do AD. Temos, assim, de identificar, isolar, as deficiências imputáveis a uma proposta que permitam sustentar que é “inadequada”. É fundamental delimitar o seu alcance, para evitar a utilização incorreta do AD.
Com os olhos postos no art.º 24.º e n.º 2 do art.º 70.º do CCP, é referido no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 78/2022: “(…) procede-se ainda a um outro conjunto de alterações com o ensejo de aprimorar disposições que têm revelado menor alinhamento com o teor das diretivas europeias em matéria de contratação pública (…)”.
Por isso, é importante consultar a definição europeia de “propostas inadequadas”.
Nos termos do art.º 32.º, n.º 2, alínea a), segundo parágrafo, da Diretiva 2014/24/UE: “Uma proposta deve ser considerada inadequada quando for irrelevante para o contrato, não permitindo manifestamente satisfazer, sem alterações substanciais, as necessidades e requisitos da autoridade adjudicante conforme especificados nos documentos do concurso.”. (sublinhado meu). (5)
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) corrobora o que está previsto na norma da Diretiva: “(…) uma proposta deve ser considerada inadequada quando for irrelevante para o contrato (…)”. (6)
Em sintonia com o legislador europeu, o fundamento previsto na alínea a), n.º 2, do art.º 70.º, do CCP, idóneo para qualificar uma proposta de “inadequada”, exige um notório desvio (infração) ao objeto do contrato. (7) Podemos equacionar aqui alguns casos, cujo enquadramento parece indiscutível. Os concorrentes: i) proporem camisas de manga curta em vez de camisas de manga comprida; bicicletas de montanha em vez de bicicletas de estrada; computadores portáteis em vez de computadores de secretária; carros híbridos em vez de carros elétricos. (8) (9)
Poderão surgir situações duvidosas, geradoras de dissídios interpretativos. É disso exemplo o caso relatado no Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2009, no Processo C-250/07. Concretamente, foram consideradas “inadequadas” as propostas apresentadas desconformes com as especificações técnicas fixadas pela entidade adjudicante à luz das prescrições regulamentares em matéria de proteção ambiental, nesta situação a central termoelétrica (objeto do contrato) não poderia começar a funcionar legalmente. (10) (11)
A respeito da matéria, erguem-se ainda algumas questões:
- Todas as propostas têm de ser excluídas unicamente com fundamento na primeira parte da alínea a) do n.º 2 do 70.º do CCP (proposta inadequada)?
- Podem ser convidados a participar no AD os concorrentes cujas propostas foram anteriormente excluídas com fundamento na “proposta inadequada”?
Começando pela primeira questão, creio que a exclusividade é a interpretação que se pode retirar da norma. Por conseguinte, se todas as propostas (ou uma delas) forem atingidas por vários motivos de exclusão a situação não é elegível para justificar o AD, nos termos da alínea a) n.º 1 do art.º 24.º do CCP. Será elegível na hipótese das propostas serem salvas por intermédio, designadamente, do n.º 3 do art.º 72.º do CCP, restando apenas a exclusão com base na “proposta inadequada”. (13)
No que toca à segunda questão, o legislador não veda expressamente a possibilidade de os concorrentes cujas propostas foram excluídas poderem participar no AD. Exceto aos operadores económicos que estejam abrangidos pelas situações de impedimento previstas no art.º 55.º do CCP. Embora, também não confere àqueles o direito a serem convidados. (14)
O legislador nacional, ao invés de remeter para o ordenamento europeu, deveria ser mais preciso no CCP. Arrumar melhor a matéria. (15) Já vimos que a “proposta inadequada” é necessariamente diferente de outros males que a possam atingir. Deve ser entendida de forma restrita. Embora, no confronto com as diretivas europeias, poderão surgir dúvidas. Por exemplo, nos termos da Diretiva 2014/24/UE, uma proposta pode ser irregular, inaceitável ou inadequada.
Uma última observação. As peças dos procedimentos que estão a desenrolar-se podem conter a figura da “proposta inadequada” e regras sobre as consequências da sua apresentação. (16) Todavia, não podem as entidades adjudicantes adotar o ajuste direto ao abrigo das novas disposições, considerando que Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, que procedeu às alterações da alínea a) n.º 1 e n.º 2 do art.º 24.º e alínea a) n.º 2 do art.º 70.º do CCP, ainda não entrou em vigor. (17)
Em suma, a vida não está fácil para as entidades adjudicantes. As dúvidas e dificuldades na aplicação da lei é terreno propício a leituras à medida das conveniências, à tomada de decisões erradas. A meu ver, sobre o assunto, irão ser escritas muitas linhas. Mais litigância à porta – é o meu palpite.
Este texto já vai longo. As últimas palavras é para voltar à ideia inicial. Não devemos estigmatizar excessivamente um procedimento útil, indispensável nas compras públicas. Se for alvo de um correto manejo não deve haver temores. No momento da decisão, utilizá-lo sempre que necessário, (18) justificando-o com base no escrupuloso e milimétrico cumprimento da lei.
O AD não é um vilão. Ele é preciso. Mas, por vezes, é um rebelde, um vagabundo, que requer mãos educadas.
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(1) Utilizado para fazer compras de baixo valor ou em cenário de necessidade urgente.
(2) Os dados estatísticos são perentórios: o AD e os seus irmãos europeus há muito anos que ocupam os lugares cimeiros. - Cfr. nos seguintes endereços:
Registro Público de Contratos - https://www.hacienda.gob.es/es-ES/Areas%20Tematicas/Contratacion/Junta%20Consultiva%20de%20Contratacion%20Administrativa/Paginas/Registro%20publico%20de%20contratos.aspx
(3) Cuja atividade é a prossecução do interesse público, ex vi art.º 266.º n.º 1 da CRP.
(4) Para justificar a alteração o legislador, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, diz o seguinte: “À escolha do procedimento de ajuste direto: restringe-se o acesso a este tipo procedimental às situações (já hoje previstas no CCP) em que nenhum concorrente tenha apresentado proposta ou nenhum candidato se haja apresentado, ou ainda (e aqui figura a inovação) em que as propostas sejam consideradas «inadequadas» à luz das diretivas, remetendo para o conjunto das disposições que no CCP correspondem à definição europeia de «propostas inadequadas». (sublinhado e negrito meu).
(5) Sobre as “alterações substanciais” o Tribunal de Justiça estabelece uma analogia com o declarado no acórdão de 19 de Junho de 2008, Pressetext Nachrichtenagentur, C-454/06, referindo o seguinte: “ (…) a modificação de uma condição inicial de um contrato pode ser considerada substancial (…) designadamente quando a condição modificada, no caso de ter figurado no processo de adjudicação inicial, tivesse permitido que as propostas apresentadas no quadro do processo com concurso prévio fossem consideradas adequadas, ou tivesse permitido que proponentes diferentes dos que participaram no processo inicial apresentassem propostas.”. - Cfr. Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2009, no Processo C-250/07, ponto 52 – disponível no endereço: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62007CJ0250
(6) Cfr. Acórdão do TJUE, de 16 de junho de 2022, no Processo C‑376/21, ponto 61 - disponível no endereço: https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=pt&td=ALL&num=C-376/21
(7) Não respeitar manifestamente o objeto do contrato a celebrar é, seguramente, não permitir manifestamente satisfazer, sem alterações substanciais, as necessidades da entidade adjudicante. Deste modo, uma vez que não se pode mexer na proposta (é irrecuperável) nem nas peças do procedimento, esta torna-se irrelevante para o contrato. (Vide, de forma conjugada: alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 24.º, alínea a) do n.º 2 do art.º 70.º, todos do CCP, e art.º 32.º, n.º 2, alínea a), da Diretiva 2014/24/UE).
(8) A jurisprudência francesa considerou que propor espelhos sem braços para veículos, em vez de espelhos com braços, como desejado pela entidade adjudicante, é uma proposta inadequada. - Cfr. a decisão do Tribunal de Marselha: CAA Marseille, 11 juillet 2016, N° 15MA01461
(9) Ou seja, perante uma “proposta inadequada” o contrato não tem pernas para andar. É como, por absurdo, propor aviões ou bicicletas sem trem de aterragem ou pedais.
(10) Cfr. ponto 40, 41, 42, 43, 44, do citado Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 2009, no Processo C-250/07, disponível no endereço: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62007CJ0250
(11) O caso foi discutido no âmbito da aplicação da alínea a), n.º 2, do art.º 20.º, da Diretiva 93/38, cuja redação é próxima da contida atualmente na alínea a), n.º 2, do art.º 32.º, da Diretiva 2014/24/UE.
(12) Neste caso, possivelmente por via da alínea b), n.º 1, do art.º 24.º do CCP, seria exequível o AD.
(13) Notar que o fundamento da proposta inadequada (incapaz de responder ao objeto do contrato – portanto, inútil) não afasta ou abafa os restantes motivos de exclusão. Uma proposta vale pelo todo. É uma manifestação do seu conteúdo. Não visa apenas o objeto do contrato. (Cfr. n.º 1 do art.º 56.º e n.º 1 do art.º 70.º do CCP). Esquecer os motivos de exclusão é forçar o AD. É criar artificialmente condições de aptidão para a escolha do AD.
(14) A propósito, no Acórdão do TJUE, de 16 de junho de 2022, no Processo C‑376/21, ponto 68, é dito o seguinte: “(…) os operadores económicos que não foram diligentes ao não apresentar uma proposta adequada num concurso aberto ou limitado não podem obrigar, no âmbito do subsequente procedimento por negociação sem publicação prévia, a autoridade adjudicante a entrar em negociações com eles. Com efeito, podiam ter apresentado uma proposta no âmbito de um anterior concurso aberto ou limitado e, portanto, beneficiado plenamente dos princípios da igualdade, da não discriminação, da transparência e da proporcionalidade.”.
(15) A França, no “Code de la Commande Publique”, tem uma Seção dedicada às propostas irregulares, inaceitáveis, inadequadas: (articles L2152-1 à L2152-4). O legislador define cada uma delas e o tratamento a dar.
(16) A discricionariedade procedimental da entidade adjudicante está, designadamente, prevista no n.º 4 do art.º 132.º do CCP.
(17) Cfr. art.º 9 do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro
(18) Lembrando que a necessidade é a primeira condição para as entidades adjudicantes poderem ir ao mercado. Nenhum procedimento adjudicatório será válido se a necessidade de comprar não estiver justificada. A decisão de contratar deve ser fundamentada, conforme referido no n.º 1 do art.º 36.º do CCP.
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PARA CITAR O ARTIGO:
“O Ajuste Direto Não é um Vilão” - DURÃO, José Carlos Marques, publicado em 24 de novembro de 2022, disponível no endereço: https://mjosecarlos.wixsite.com/meusite